Não consigo respirar. O que me impede de respirar neste momento não é a insuficiência respiratória causada pelo covid-19. Não consigo respirar diante de tantas notícias de morte de pessoas negras de forma cruel e executória. Não consigo respirar porque mal termino de ficar em choque com uma morte cruel, ou treze, e outras mais cruéis ainda acontecem. Não consigo respirar, porque cada dia um dos nossos é morto de forma violenta, vítimas de um sistema racista e desumano.
Vivemos em uma sociedade que nos impede de respirar e, consequentemente, de existir. Uma sociedade que, historicamente, colocou os negros em uma situação de subalternidade. Que coisificou, vilipendiou, massacrou e sufocou a nós negros e negras. Uma sociedade da hierarquia e do privilégio branco.
A abolição da escravidão, as conquistas cidadãs, o avançar do tempo, da tecnologia e dos modos de vida trouxeram poucas mudanças para a construção do negro no imaginário social. Tanto no Brasil quanto em outros países que, em seu passado, adotaram a escravidão como forma de relação de produção. Uma vez que o que vemos diariamente é a coisificação, a execução sumária e a chacina de pessoas negras. O que vou chamar aqui de "negrocídio", isto é, a morte de pessoas negras, simplesmente por elas serem negras.
A pandemia, por si só, já traz motivos que nos impedem de respirar de forma adequada, seja no sentido denotativo, pelo contágio pelo covid-19 ou pelo uso de máscaras. Seja no sentido conotativo, por estarmos há mais de 80 dias “trancados” em nossas residências, para quem tem uma. Entretanto, as mortes de pessoas negras de forma brutal, que, nas últimas semanas, vêm sendo noticiadas, tanto no Brasil quanto no EUA, são apenas uma pequena parcela de mortes da população negra que conseguiu romper o espiral de naturalidade e o estado de letargia que sempre vivemos em relação ao negrocídio.
Quantos homens e mulheres negros são silenciados, sufocados, asfixiados diariamente no Brasil, vítimas do racismo estatal, e sequer ficamos sabendo. Quantos pretos, que já são considerados invisíveis em vida, permanecem assim em sua morte. Os quais nem seus familiares têm a oportunidade de velar porque o copo sumiu. Uma vez que a lógica "sem corpo sem crime" é uma velha conhecida das instituições que deveriam servir e proteger. Isso para falar da face mais visível e cruel da violência contra o povo negro. A violência estatal, que encontra nas forças de segurança a personificação da mão, nada invisível, que aperta o gatilho.
O silenciamento do povo negro não se dá só nessas infelizes tragédias que estamos vendo nas ultimas semanas. A morte do americano George Floyd desencadeou uma comoção internacional. Que penso ser justa, digna e legitima. Mas só pra avisar que, aqui, abaixo da linha do equador, todos os dias um preto é morto de forma cruel. O racismo, aqui no país tropical, existe e mata com tanta ou mais crueldade que os agentes públicos americanos. Que corpos pretos são sentenciados diariamente na fila do SUS, na cozinha da madame, nas unidades de socioeducação, na escola pública, nas cadeias, etc. O negro aqui serve pra tudo! Menos para ser respeitado.
Até quando não vamos conseguir respirar? Até quando nossa vida vai valer menos? Até quando a polícia vai achar que eu sou suspeita? Até quando eu vou servir apenas para fornicar? Até quando a hipocrisia vai reinar? Até quando eu vou ter que me calar? Até quando...
Renata Souza, professora de Sociologia da Educação Básica, Mestre em Sociologia Política e Pesquisadora do Núcleo Cidade, Cultura e Conflito e Doutoranda em Sociologia Política pela UENF..
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