Sexta-feira, 19 de abril de 2024

Do alicerce a laje

04/10/2020 às 08h01 04/10/2020 às 08h19

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Na subida da rua tinha duas araucárias que geravam pinhões que catávamos pra comer até não aguentar mais. / Foto: Davison Alves

A casa ainda era de chão, mas a necessidade nos obrigou  a morar lá no alto da rua do Jardim Pinheiros - esse era o nome da rua que depois se chamaria  Jose Rabelo - logo que papai e mamãe conseguiram colocar a laje, num mutirão que reuniu os amigos de papai, numa empreitada regada a muito pão com mortadela, nos mudamos - não me lembro onde morei antes. 

Na subida da rua tinha duas araucárias que geravam pinhões que catávamos pra comer até não aguentar mais. Minha mãe cozinhava num fogão à lenha.  Mas, voltando a falar dos perrengues, pra termos acesso à rua subíamos uma escada íngreme de chão. Quando chovia escorregava e, às vezes, desmoronava. Quando fazia sol deslizávamos, caso a pressa fosse maior do que a prudência. Eu, moleque pequeno, não ligava muito para as orientações dos meus pais, neste sentido. Vivia capotando escada abaixo. Canela ruça e ralada, aprendi a saltar os degraus mais perigosos tanto quando subia ou descia pra casa, que ficava num declive bem no meio do morro.

As terras ali pertenciam à antiga fazenda Pimenteiras. Papai e Tio Hélio, juntamente com Vô Zé e Vó Vita, se juntaram e compraram o lote de “a meia”. Meu pai fez a nossa casa num platô mais baixo em relação a casa de cima. Desta forma, imagino, poderiam aproveitar melhor o terreno. Na casa de cima, que na verdade ficava a direita da de baixo, portanto ao lado, morava, além de dos meus avós paternos, Tio Hélio, tia Lenir, Zé Carlos (tio) e meu Bisavô João Mundica, uma figura de um humor único. Vó Vita era do lar, os rapazes trabalhavam, bem como tia Lenir. Aos domingos minha vó tinha o hábito de fazer galinha para o almoço. Normalmente eu, Zé Carlos e depois Luís Carlos, meu primo, tínhamos a missão de ir buscar na granja, que ficava na Rua Dr. Oliveira, a principal via da Barra do Imbuí, o galináceo vivo amarrado pelos pés. De vez em quando ou quase sempre, levávamos umas bicadas pelo caminho. Vovó era exigente e se o bicho estivesse com gôgo (uma espécie de coriza que dá em aves) tínhamos que voltar à granja pra trocar. Mas, duro era participar da decaptação da ave, fosse frango ou galo. Quantas vezes corri dessa missão. Vovó, depois de matar recolhia o sangue pra fazer ao molho pardo, mas também fazia à cabidela, com quiabo ou assada no forno do fogão Dako que tia Lenir comprara, com dinheiro do salário que recebi da loja de cortinas do Joel. Mas o mais comum era fazer ao molho pardo mesmo e ali emergia o falecido numa panela de água fervendo pra depenar, com a mão, arrancando pena após pena. Era um ritual que quase impedia a gente de almoçar. Mas a fome sempre ganhava. Assustados ficávamos quando ouvíamos o abate dos porcos. Por sorte não éramos chamados a ajudar. Nessas manhãs dominicais ela tinha em tia Lenir sua principal ajudante. Tia Lenir era a melhor tia do mundo, na nossa visão de criança.

Aquela que nunca nos deixava sem presente de natal e aniversário. Minha mãe fazia nosso almoço lá em casa, mas eu sempre beliscava o que Dona Vita fazia. Os dias iam passando e logo tio Hélio fez sua casa por cima da casa do vô Zé e vó Vita. A casa ficou por muito tempo inacabada. Ela só veio ficar pronta quando ele resolveu se casar com tia Creuza. Ele morou embaixo enquanto deu, mas tia Lenir casou com tio Carlinhos e logo veio Anderson e depois Emerson, Shirlei nasceu por último. A casa já não comportava tanta gente. No meio dessas chegadas vô Zé foi embora antes de vô João. Tia Lenir foi morar longe com sua família e nós ficamos ali vendo nossos pais fazerem um esforço grande pra nos criar da melhor maneira possível. A vida era dura. Mas as crianças eram imensamente felizes. Brincávamos de tudo naquela ladeira da minha infância. A nossa rede social era mais rica do que a temos hoje. Vendo que precisava arregaçar as mangas pra ajudar meu pai, Tião Zé, nossa mãe, Ledilce, que também  tinha o apelido de Mocinha, resolveu voltar a trabalhar  em casa de família. Ela ia todas as manhãs lá para os lados do Alto. Eu fazia um escândalo com saia para esses afazeres. Seus patrões, mais frequentes,  eram Dona Lurdes e seu Fernando - os dois viraram amigos. Mesmo assim a coisas continuavam difíceis. Foi então que ela resolveu estudar. Aquilo soou como uma afronta ao meu pai, que de início relutou bastante, incentivado pelos amigos que diziam que suas mulheres não trabalhavam. A honra de um homem macho era o pouco de tudo que ele podia manter naqueles anos. O dinheiro não dava pra nada. Mas Dona Ledilce, que saiu aos 11 anos de um canavial de Campos, num trem noturno rumo ao Rio de Janeiro, não desistiria fácil. Tinhosa pegou Valéria, minha irmã mais velha, e foi estudar no Campos Sales à noite cursando supletivo.

Papai, munido de preconceito e provocação dos amigos de bar, não conviveu bem com essa novidade por um bom tempo. Mas logo o tempo mostraria a ele que não era preciso temer. Mamãe começou a trabalhar na prefeitura na área da saúde. Tia Helena arrumou o serviço. Naquele tempo não tinha concurso. Tinha qualificação e indicação. Mamãe fez curso de técnica de enfermagem e passou a trabalhar no hospital das clínicas no Vale do Paraíso. Depois foi ser auxiliar de enfermagem nos postos de saúde da cidade. A gente cresceu tendo, neles, os melhores exemplos de dedicação e dignidade. O coração afastou Seu Sebastião José da carpintaria. Ele teve que se reinventar e assim o fez. Vendeu roupa, foi segurança de obra, abriu uma loja de peças de carro com apoio do tio Rodoval. No início da década de oitenta - não sei vem bem o ano - nossa casa foi danificada por uma forte chuva que caiu no verão de Teresópolis. As ruas alagadas recebiam os entulhos que desciam dos morros. Por pouco a casa não foi junto. Tivemos que nos mudar e passar a pagar aluguel. Eu e Valéria já estávamos terminando o Segundo Grau no colégio Estadual Edmundo Bittencourt e logo iríamos pra faculdade. Marcia vinha atrás com a mesma certeza. Meu pai doente  assistia aquilo com um certo orgulho. O acontecido com a casa nos levou a tomar uma série de atitudes que fizeram a vida mudar pra melhor. Era Deus escrevendo certo por linhas tortas. Tudo nos fortalecia para o próximo embate. Vó Vita viu tudo dar certo de camarote; viveu até os 85 anos. Sua grande dor foi ver papai partir cedo demais. Mas ele foi sabendo que seus filhos estavam no caminho certo. Suas angústias ficaram pra trás.  Valéria se formou em Letras pela Gama Filho, eu, em jornalismo, na Estacio de Sá e Marcia, em Psicologia, também pela extinta Gama Filho. Todas as Unidades situadas na cidade do Rio de Janeiro. Inúmeras foram as pessoas que nos acolheram neste sonho estudantil. Agradecer a todos seria impossível. Descer diariamente para o Rio constituía uma odisseia diária pra conseguir recursos e manter o foco. Tinha um quê de insanidade na gente. Um sangue quente em combustão permanente que vinha da junção de Tião e Ledilce, vó Vita, vô Zé e Norival e Mãe Maria. O caminho foi sendo pavimentado desde lá de trás pelos nossos doces e fortes ancestrais. O que seria da gente sem esses heróis?

 

Fonte: Jornalista Alfredo Soares

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