É sempre complicado falar sobre segurança pública com isenção. Na verdade, nem os mais argutos acadêmicos conseguem, já que são objetos, causa e efeito do fenômeno que observam.
Sim, a segurança pública perpassa quase todos os aspectos de nossas vidas e, de certa forma, foi em busca de segurança que os primeiros coletivos humanos forjaram a ideia de cidades e de Estado. Assim, com o andar da História, cada parte do planeta viu as circunstâncias desse conceito evoluir de forma diferente, em alguns locais com mais eficiência, em outros com menos sucesso.
Com o fortalecimento global das organizações criminosas, como a máfia italiana, russa, chinesa e japonesa, e a correspondente absorção dessas manifestações dentro dos aparatos estatais diversos, houve um salto “de qualidade” nessas estruturas. Não é leviano dizer que, ao mesmo tempo em que empresas se tornaram transnacionais, o crime perseguiu o mesmo caminho.
Não há como separar a indústria de armas da atividade ilegal do tráfico de armas, os sistemas financeiros internacionais da lavagem de dinheiro, a mineração de metais e pedras preciosas do contrabando, assim como uma série de produtos eletroeletrônicos, cigarros e bebidas.
Esse modelo híbrido, de dinheiro “limpo” e dinheiro “sujo”, chegou aos serviços de internet, fornecimento de insumos e também ao transporte. Não é coincidência. Quanto mais livre o capital circula, mais dinheiro “sujo” é criado e lavado. Ao mesmo tempo, quanto mais desiguais são as sociedades onde esse capital se movimenta, mais crime e letalidade violenta teremos.
Olhemos a Europa e os Estados Unidos, por exemplo. Tem tráfico e usuários? Sim, muitos. Tem tráfico humano? Sim. Tem tráfico de armas? Sim. Tem contrabando? Sim. São locais de incidência letal como México, Brasil ou África? Não.
O problema, como podemos ver, é complexo, de múltiplas causas, portanto, não terá solução fácil. A Operação Contenção, executada pelas forças de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro, mostra a que ponto chegamos.
Primeiro, e antes de mais nada, toda minha solidariedade aos colegas que morreram em combate. Depois, é preciso dizer: estamos em um beco sem saída, ou chegamos a um ponto de não retorno, e o que restou às autoridades são as medidas de força, aquelas que, paradoxalmente, alimentam e acalmam um pouco a histeria coletiva.
Fatos: Cláudio Castro, o governador, não pode ser considerado o único responsável pelo problema, que se arrasta há décadas. O governo federal do presidente Lula, seja na sua versão I, II ou agora na III, não tem a menor ideia de um projeto de segurança pública e de alteração institucional do papel das polícias.
Diante desse impasse, as partes envolvidas lançam-se ao improviso, e o resultado é sempre extremo, como se viu ontem. O governador acerta quando reivindica que as unidades da federação tenham mais autonomia legislativa para definir penas, crimes e a legislação de cumprimento das penas.
Porém, o mesmo governador recusa aceitar o modelo institucional policial onde essa fórmula dá certo, como nos Estados Unidos, onde as polícias são municipais, os tribunais e ministérios públicos também, pagos pelas cidades. Nesse formato, não há PM e Polícia Civil, e as polícias estaduais agem em crimes específicos e transmunicipais, enquanto as agências federais cuidam apenas dos chamados crimes federais e internacionais.
Já o governo Lula, com sua PEC da Segurança Pública, quer o contrário, ou seja, quer centralizar ainda mais a estrutura, o que não deu certo até aqui.
O número de mortos na operação de ontem, o volume de armas e entorpecentes apreendidos revelam que esse modelo de segurança pública brasileiro e não apenas fluminense, não deu certo. A aparente vitória de apreender um fuzil ou matar um bandido armado se dilui porque a presença do fuzil e de um criminoso com ele já mostram que já fomos derrotados.
Uma cidade onde se patrulha de helicóptero e policiais andam de blindados já perdeu há muito tempo a sua compreensão de normalidade. Um cenário em que imprensa e governos disputam a narrativa da carniça também já é sinal de que somos devorados pela nossa incompreensão dos fatos que nos cercam.
Todo meu respeito aos colegas mortos e meu pesar às suas famílias.
- Douglas da Mata é policial civil e compartilha neste texto sua análise crítica sobre o atual cenário da segurança pública no Rio de Janeiro.
Fonte: Por Douglas da Mata