Transição capilar!! Respeitem meus cabelos!

Facebook Whatsapp Twitter
Quarta-feira, 17 de abril de 2024
Anuncie no Ururau | Contato
Logo

Cidades

Transição capilar!! Respeitem meus cabelos!

Renata Souza faz uma análise neste sábado (13/06), sobre transição capilar.

Facebook Whatsapp Twitter

13/06/2020 às 09h13 15/06/2020 às 17h48

Divulgação
Renata Souza faz uma análise neste sábado (13/06), sobre transição capilar.

Compartilhe esse podcast!

Facebook Whatsapp Twitter
A professora de Sociologia da Educação Básica, doutoranda em Sociologia Política, da Universidade Estadual do Norte Fluminense, pesquisadora do Núcleo Cidade, Cultura e Conflito da UENF e criadora do @sociologia_napratica, Renata Souza faz uma análise neste sábado (13/06), sobre transição capilar.

Respeitem meus cabelos!

Como a maioria das meninas negras que nasceram na década de 80, fui apresentada desde muito nova, aos vários métodos de tortura capilar. Tortura sim! Porque hoje entendo tudo que estava por trás daqueles alisantes infernais que queimavam meu coro cabeludo, ardiam meus olhos e era motivo de choro e sofrimento em minha casa a cada 2 ou 3 meses. A hora de cuidar do cabelo era momento mais traumático do meu dia.

CONTINUA DEPOIS DO INFORMATIVO

Cresci odiando pentear os cabelos, achava que um dia, meus olhos se assemelhariam a de uma oriental. A força e os rabos de cavalo feitos em meus cabelos eram extremamente apertados. Tudo em nome de não deixar nenhum fio se rebelar e mostrar que de fato eu não tinha cabelos lisos. Meu cabelo era quase assunto do código Penal, como costumavam dizer popularmente. Era o cabelo bandido, ou estava preso ou armado. Logo era perigoso em qualquer das suas formas de apresentação.

A medida que fui crescendo incorporei o argumento irrefletido, do senso comum, que o cabelo alisado se justificava por ser mais fácil de cuidar e uma alternativa “legal” ao cabelo bandido, afinal meu cabelo era classificado como o cabelo ruim, o cabelo de pico, cabelo duro e outras coisas do gênero.

A mais ou menos três anos atrás, resolvi não mais alisar meus cabelos. E junto com essa decisão veio uma enxurrada de questionamentos e uma leve crise existencial. Além de questões existenciais, tive uma profunda crise de representatividade. Onde estão as mulheres negras de cabelo natural bem-sucedidas? Quais atrizes negras fazem papel de destaque? Quantas jornalistas negras vejo na TV?

Comecei a perceber que não faltavam apenas mulheres negras com seus black power na mídia, faltavam pessoas negras como um todo, com cabelo liso ou natural. Não via pessoas negras em posição de destaque, em profissões bem remuneradas. Faltava representatividade. Infelizmente, ainda sou a única negra a frequentar alguns espaços de poder em uma condição “privilegiada” o que me levou a mais questionamentos.

CONTINUA DEPOIS DO INFORMATIVO

Aos olhos de quem não é negra ou é negra e nunca questionou seu cabelo alisado, minhas inquietações poderão parecer algo menor. Só que atrás de um cabelo alisado existem um campo de disputas por narrativas e poderes. Narrativas ideológicas em que o padrão eurocêntrico se estabelece às custas da autoestima e sacrifício das muitas mulheres negras. Que eram e ainda são “submetidas”, como disse no início, a um verdadeiro ritual de tortura.

Que fique nítido, que não quero dizer que todo mundo tenha que fazer uma transição capilar ou queimar as chapinhas e os alisantes em praça pública. Se quiser continuar alisando o cabelo, ok! Não penso que o cabelo alisado, por várias questões que apontarei abaixo, deslegitime o discurso engajado e consciente. Tenho consciência que a posição de alisar ou deixar de alisar é imposição. Não podemos sair de uma e cair em outra.

Alguns me dirão: “Que exagero! O alisante não pula na cabeça de ninguém”. Sim! Concordo. A colonização do pensamento e as necessidades criadas pelo paradigma eurocêntrico criaram amarras, ou melhor, alisantes para uniformizar os cabelos e os pensamentos. Nós mulheres negras para sermos aceitas no mercado de trabalho, na escola e no mercado matrimonial, fomos obrigadas, durante muitos anos, a alisarmos nossos cabelos. Ou seja, sofremos uma violência silenciosa, do tipo que a sociedade naturaliza e ninguém questiona.

Um tipo de violência branda, uma violência que usa artifícios sutis para que as regras impostas pelos que dominam sejam até desejadas. O sociólogo Frances Pierre Bourdieu cunhou o conceito de “violência simbólica”, que eu tomo a liberdade de usá-la aqui para pensar a colonização e normatização de nossos corpos. Afinal, o corpo da mulher sempre foi um campo de disputas, não ficaria o cabelo da mulher negra fora dessa seara.

CONTINUA DEPOIS DO INFORMATIVO

A violência simbólica “consiste em uma forma de aceitação de crenças, regras partilhadas como se as mesmas fossem normais e naturais”. A ideia do amor materno, a crenças de que é papel da mulher cuidar da casa e dos filhos sozinha, que homens não sentem medo e não podem chorar, dentre outras. Com o alisamento do cabelo é assim, já está estabelecido que durante muito tempo alisar o cabelo era uma etapa considerada “normal” na vida de uma menina negra.

O que gerou anos de inflexão da mulher negra sobre seus cabelos. E não as culpo, ou melhor, não me culpo. Pensar no cabelo é pensar em autoestima, é pensar nossa relação com o mundo. Pensar o cabelo das mulheres negras alisados é pensar em não sofrem bullying na escola, é não ter sua capacidade posta em dúvida porque usa seu cabelo natural. Alisar seu cabelo é ter certeza que terá um par para dançar na festa junina, é a possibilidade de figurar na lista das garotas bonitas da sala quando se está na quinta série. Coisas que para uma mulher branca adulta pode parecer não ter muita importância, mais que para uma criança terá impactos reais para o resto de sua vida adulta.

A medida que comecei a ler mais e entender mais sobre minha condição de mulher e negra na sociedade brasileira, a vontade de não alisar mais meu cabelo só foi aumentando. Mas como já disse, essa vontade vem cheia de dúvidas e de medos. A transição de uma vida inteira de cabelo alisado para um cabelo natural envolve uma série de etapas, esteticamente não muito agradáveis. Adiei e sabotei o processo várias vezes. Quando via uma parte do meu cabelo natural contrastando com o restante alisado, sentia grande incomodo e infelicidade com minha autoimagem.

Conversando com um amigo sobre as dúvidas e medos que eu estava enfrentando em meu processo de transição capilar, ele me apresentou uma autora estadunidense negra chamada Bell Hooks, que escreveu um texto que me fortaleceu de uma forma que não tive mais dúvidas sobre minha decisão. O texto chama-se: “Alisando nosso cabelo”. Nesse texto a autora faz uma reflexão sobre a impressão dela sobre o processo de alisar os cabelos, com o extinto pente quente. Em um primeiro momento esse cabelo alisado estava vinculado aos anseios de se tornar mulher, de proporcionar bem-estar e da criação de vínculos entre mulheres.

CONTINUA DEPOIS DO INFORMATIVO

Hooks nos conta que como viviam em um mundo segregado racialmente, não era evidente a ideia de que as mulheres negras estavam lutando para colocar em prática um padrão de beleza branco, ou seja, o fato de mulheres brancas serem consideradas um grupo feminino mais atrativo e as mulheres negras de cabelo liso serem mais aceitas do que as de cabelo crespos e encaracolados, acabou estabelecendo um padrão de beleza.

Ela segue dizendo que no “patriarcalismo capitalista, essa postura representa uma imitação da aparência do grupo branco dominante e, com frequência, indica um racismo interiorizado, um ódio a si mesmo que pode ser somado a uma baixa autoestima”. Mais uma vez não me sinto culpada por algum momento de minha vida ter tentado, assim como muitos e muitas ainda tentam expurgar tudo que me identificasse como negra, porque ser negro no Brasil não é legal, quase no sentido literal da palavra.

Infelizmente, o racismo que estrutura nossa sociedade nos faz ter ódio de nossa cor da pele, de nossos cabelos. Identificar-se como negro no Brasil está além da autodeclararão. É uma questão política. E para alguns é uma questão de vida ou morte, porque nós negro figuramos o topo das piores estatísticas neste país.

Versão em inglês

CONTINUA DEPOIS DO INFORMATIVO

The primary education sociology teacher, doctoral candidate in politic sociology at Universidade Estadual do Norte Fluminense, researcher of the Núcleo Cidade, Cultura e Conflito from UENF and creator of @sociologia_napratica, Renata Souza does an analysis this Saturday (13/06) about hair transition.
Respect my hair!

Like the majority of black girls born in the 80’s, I was presented from a young age to the various methods of hair torture. Yes, torture! Since now I understand everything behind those hellish smoothing creams that burned my scalp, ached my eyes and were the reason of tears and suffering in my house every two or three months. The time to take care of my hair was the most traumatic hour of the day.

I grew up hating to comb my hair, I thought that one day my eyes would end up looking like an eastern girl. The ponytails done in my hair were always extremely tight. All for sake of not letting any strand of hair rebel and show that in fact, I didn’t have straight hair. Treating my hair was not a course for the faint-hearted, as people used to say.

As the years passed by, I accepted without questioning the argument, the common sense, that a straight hair justified itself for being easier to take care of and for being a “good” alternative to my difficult hair, since mine was treated as the bad hair, the straw hair, and many others as such.

CONTINUA DEPOIS DO INFORMATIVO

More or less three years ago, I decided not to straight my hair. And with that decision, came a torrent of questioning and some existential crisis. Not onlt this, but I also had a profound crisis of representation. Where are the well-succeeded black women of natural hair? What black actresses play leading roles? How many black reporters I see on TV?

I started noticing that that it was not only a lack of black women with their black power on media, but black people as a whole, with straight or natural hair. I didn’t see black people as leading role models, in well-paid professions. There was a lack of representation. Unfortunately, I’m still the only black person to frequent some spaces in a “privileged” condition, which took me to more questioning.

On the eyes of someone who’s not black, or maybe is but haven’t ever questioned their straight hair, my concerns may look smaller. It’s just that behind a straight hair there’s an open area of dispute for narratives and power. Ideological narratives in which the Eurocentric standard establishes itself at the cost of self-esteem and sacrifice of many black women, that were and still are submitted in a ritual of torture.

May it be clear, that I don’t mean that everyone has to make a hair transition or burn down their flat irons and hair straightener on a public square. If they want to keep straightening their hair, that’s their own business. I don’t think that having a straight hair, for many reasons that I will list below, could delegitimize a conscious and engaged statement. I’m aware that the position of straightening or not is an imposition.

CONTINUA DEPOIS DO INFORMATIVO

Some will tell me “What an overreaction! The hair straightener doesn’t just jump into someone’s head!”. Yes, indeed. The colonization of mind and the necessities created by the Eurocentric models created bonds, or better, “straightened” bonds to standardize hair and thoughts. Us, black women, in order to be accepted in the labour market, at school and even at matrimonial matters, are obligated during many years, to straighten our hair. So to say, we suffer a silent violence, of which society naturalizes and nobody ever questions.

A kind of bland violence, that uses subtle methods for the rules imposed by the ones who dominate until they become desired. As coined by the French sociologist Frances Pierre Bourdieu, the term “symbolic violence”, which I take the liberty of using here to think the colonization and normalization of our bodies. After all, the women’s body was always a field of dispute, a black woman’s hair wouldn’t stay out of this.

The symbolic violence “consists in a form of acceptance of belief, rules shared as if they were normal and natural”. The idea of motherly love, the belief that it is a woman’s role to take care of housework and children alone, that men don’t fear and can’t cry, among many others. With the straightening of hair it is so, it’s already stablished that during a long time, straightening the hair was a step considered “normal” in the life of a black girl.

What caused years of inflexion of black women over their hairs. And I don’t blame them, or may I say, I don’t blame me. To think about hair is to think about self-esteem, it’s to think about out relation with the world.

CONTINUA DEPOIS DO INFORMATIVO

To think about black women’s straightened hair is to think about not being bullied at school, is about not having your capacities doubted because you use your natural hair.

Straightening your hair is to be sure to have a pair to dance at a party or prom, is the possibility of starring on the list of pretty girls in the classroom when you are in middle school. These are topics that may not sound as important to an adult white woman, but will cause a real impact to children for the rest of their lives.

As I began reading and understanding more about my condition as woman and black in the Brazilian society, the desire of not straightening my hair remained stronger than ever. Still, as mentioned before, that desire also comes full of doubts and fear. The transition of an entire life of straightened hair to a natural hair involves a series of steps that aren’t aesthetically pleasant. I postponed and sabotaged the process many times. When I saw a part of my natural hair contrasting with the straightened rest, I felt a huge bother and discontent with myself.

Talking with a friend about the doubts and fears that I was facing during my process of hair transition, he presented me a black American author called Bell Hooks, who wrote a text that gave me strength in a way that I had no more doubts about my decision. The text is called “Straightening our hair”. In this text the author reflects about her impression on the process of straightening hairs, with the extinct hot comb. In a first moment this straightened hair was bound to the desire of becoming a woman, of providing well-being and the creation of bonds between women.

CONTINUA DEPOIS DO INFORMATIVO

Hooks tells us how they lived in a racially segregated world, it wasn’t evident the idea that black women were fighting to put in practice a white beauty standard, so, the fact that white women were considered a more attractive female group and that black women of straightened hair were better accepted than of natural and curly hair, ended up forming a beauty standard.

She follows by saying that on the “capitalist patriarchy, the social and political context in which the custom of black folks straightening our hair emerges, it represents an imitation of the dominant white group’s appearance and often indicates internalized racism, self-hatred, and/or low self-esteem”. Once more I don’t feel guilty in any moment in my life for trying, just as many try, to purge everything that identify me as black, because being black in Brazil, isn’t something to celebrate.

Unfortunately, the racism that structures our society makes us feel self-hatred against our own skin and hair. Identifying oneself as black in Brazil is beyond self-declaring, it’s a political matter. And for some it’s a matter of life and death, since black people often appear on top of the worst statistics in this country.

Fonte: Renata Souza

Mais podcasts

Aviso importante: a reprodução total ou parcial de qualquer conteúdo (textos, imagens, infográficos, arquivos em flash etc) do Portal Ururau não é permitida sem autorização e os devidos créditos e, caso se configure, poderá ser objeto de denúncia tanto nos mecanismo de busca quanto na esfera judicial. Se você possui um blog ou site e deseja estabelecer uma parceria com o Portal Ururau para reproduzir nosso conteúdo, entre em contato através do email: parceria@ururau.com.br
Logo
Todos os direitos reservados - Ururau Copyright 2008 - 2016 Desenhado e programado por Jean Moraes

Poxa! Você usa bloqueadores de anúncios :(

Produzir matérias com qualidade demanda uma equipe competente e comprometida com o bom jornalismo. A publicidade é o único meio de viabilizar e manter nossos serviços ofertados gratuitamente aos nossos leitores. Colabore conosco adicionando o http://www.ururau.com.br como exceção de sites permitidos.

Clique aqui e saiba como adicionar o Ururau como site permitido!

Já fiz isso Fechar aviso